one day

Baseado no livro homônimo. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Ela olhou para ele e sorriu. Se conheciam há tanto tempo, mas não se viam a mais, então ela deixou pra lá, não valia brigar pelo sumiço dele. Ele ficou parado na porta por vários segundos e depois entrou no quarto. Ela estava tão diferente do que ele se lembrava, que chegou a doer. Não era justo, essa era a verdade.
- Achei que você nunca mais viria - ela disse com a voz falhando. - Eu esperei por você.
- Demorei, mas vim - ele estava parado frente a cama, sem coragem de se aproximar mais.
- Venha aqui, Matt, eu não vou mordê-lo.
 Matthew deu os três passos que os distanciavam. Ela deu uma batidinha na cama e ele se sentou. Assim, tão próximo, ele via como ela estava debilitada.
- Me conte sobre a sua vida, tem tanto tempo que não nos falamos.
Eles cresceram juntos, eram vizinhos desde sempre, estudaram na mesma escola, na mesma faculdade, até que Matthew fez um intercâmbio no último ano para a Austrália e ficou por lá. Eles se falavam sempre que podiam, que o fuso horário permitia, mas ela não era mais parte da vida corrente dele e vice-versa, eles sabiam disso. Não que não se falassem mais, mas não com a mesma intensidade, não com a mesma intimidade. Ele sabia que ela havia se casado e divorciado em um ano e tido uma filha no meio disso. Ela sabia que ele estava casado e sua esposa tentando engravidar há dois anos. Mas ela não contara sobre a doença, ele descobrira pelos próprios pais há um mês por um descuido deles. Isso porque ela estava doente há cerca de um ano.
- Dois anos é muito tempo, já pensou em procurar uma clínica?
- Estive pensando nisso - ele fez uma careta. - E Emily?
- Ansiosa para conhecê-lo. Você não a viu quando chegou? - ele negou com a cabeça. - Ela está em algum lugar da casa.
Os dois ficaram em silêncio por um tempo, apreciando o fato de estarem juntos, e sem saber sobre o que conversar. Ela queria agradecer pela visita, ele queria curá-la, mas antes que pudessem fazer qualquer coisa, a porta do quarto se abriu. As duas eram idênticas, Matthew se lembrava quando Rachel tinha cinco anos, mais pelas fotos do que pela memória.
- Mamãe, você acordou? - Rachel sorriu, com os olhos cheios de lágrimas.
- Sim, Emily, venha aqui - a menina foi e, cuidadosa, subiu na cama. - Esse é o Matt, lembra que eu falei dele? - ela assentiu, com uma língua pra fora. - Essa é minha pequena Emily, Matt - Rachel tentou passar a mão pelos cabelos da filha, mas não conseguiu levantar o braço. - Ela já está com cinco anos, não é mesmo, meu amor? - a menina assentiu outra vez.
- Mamãe, eu não quero ir para a casa do papai hoje.
- Tudo bem, você pode ficar comigo - Emily abriu um grande sorriso e se deitou com a mãe. - Você está com sono?
- Aham.
- Então dorme - com dificuldade, Rachel passou o braço sobre o corpinho da filha. - Ela entende bem a situação e adora o pai, mas desde que adoeci, não desgruda mais de mim.
- Deve ser difícil.
- Bastante - Rachel fez uma careta.
Os dois começaram a conversar sobre amenidades, até que Rachel percebeu que a filha já dormia. Ela pediu desculpas, e resolveu ser sincera: não viveria muito mais tempo. Então foi bom vê-lo antes que o fim chegasse, foi bom aquecer seu coração, mesmo que por um dia.
A tarde avançava lenta e, quando Rachel fechou os olhos para uma soneca, Matthew saiu do quarto a fim de conversar sobre todas as coisas sérias e não ditas da doença com a mãe de Rachel. Ela não fez rodeios, descobriram tudo muito tarde, mas ainda se agarrava à esperança, era a sua filha ali.
Quando anoiteceu e ele resolveu subir para se despedir e voltar na manhã seguinte, percebeu que a expressão no rosto de Emily era aflita. E ela era apenas uma criança para demonstrar tal sentimento. Rachel ainda mantinha os olhos fechados, mas o quarto estava completamente em silêncio, nem mesmo os aparelhos aos quais ela estava ligada faziam seu bipe habitual.
- Matt - Emily o encarou - aquela caixa é pra você - apontou uma próxima a porta. - Eu vou lá chamar a vovó, tem muito tempo que a mamãe ta dormindo - ela saiu do quarto.
Ele já sabia e não queria receber a notícia do fato, então pegou a caixa, olhou uma última vez para Rachel e foi até a casa dos pais, do outro lado da rua. Ele entrou em seu antigo quarto, sentou no chão e começou a ver o que havia na caixa. Eram apenas recordações: fotos, bilhetes em sala de aula, cartões de aniversário, cartões postais da Austrália, cartas não enviadas, guardanapos escritos... Tudo que podia descrever a vida que os dois passaram juntos. Então, em um canto da caixa, separado de tudo, ele viu um envelope novo com seu nome.
Oi - era a letra dela, muito mal feita.
Eu não tenho certeza se conseguirei escrever, então tentarei sei breve.
Não posso te privar de todas as coisas que possuo, de todos os meus pensamentos frustrados, de toda uma vida em baseada em 'ses'. Talvez eu não tenha direito de fazer isso, mas eu tenho. Eu sei que você está com a vida feita - a minha quase chegou a isso - então leia como se fosse uma história, um livro que você gostou. Aqui tem todos os meus segredos e anseios, todo o sentimento que eu nutri por você ao longo desses anos. Você sempre foi meu amigo, meu vizinho, mas eu sempre gostei de você. Não é justo eu falar isso agora, eu sei, mas sua viagem foi tão repentina pra mim - principalmente sua decisão de ficar por mais tempo quando conheceu Sophia - que talvez eu tenha enfiado os pés pelas mãos. Eu estava com trinta anos, sem um companheiro estável e descobrindo sobre o seu casamento. Minhas esperanças foram perdidas, mas agora não importa, eu tive o melhor presente da minha vida por conta disso; Emily é minha maior paixão. Sim, Matt, eu amei você durante todo esse tempo, como acontece nos filmes, sabe? Desculpa não ter falado nada sobre a doença, mas eu sei que você virá, eu esperarei te ver uma última vez. Viva sua vida e não se apegue aos 'ses' como eu fiz, é um conselho válido esse. Um dia a gente se encontra outra vez. Ele percebeu a caneta mais fraca e a letra mais garranchosa.
Tchau, Rachel.
Ele simplesmente não sabia o que pensar, não naquele momento. Seu pai bateu na porta do quarto e a abriu, completamente desolado. Então, Matthew percebeu que haviam lágrimas em seu próprio rosto. Ele só não sabia se era pela perda ou pelos 'ses'.

I have to go

- Mãe? - ela apareceu na cozinha e sentou-se à mesa, olhando a mãe frente ao fogão.
- O que foi, filha?
- Eu acho que to crescendo - a menina fez uma careta e a mãe olhou para ela no mesmo instante.
- Claro que está.
- Não, não assim - ela olhou para o chão, tentando buscar uma forma de explicar a mãe o que ela queria dizer. - Eu não gosto mais de brincar de bonecas - a mãe riu, jogando a cabeça levemente para trás.
- Isso é normal, filha. Você está começando a deixar de ser uma criança.
- Mas mãe, eu sabia que ia crescer um dia, mas eu nunca ia deixar minhas bonecas de lado! Eu fiz uma coleção, poxa! Mas hoje, eu estava olhando para todas elas e, com exceção de algumas, tive vontade de dar para alguém.
- Isso acontece, com qualquer pessoa.
- Mas não comigo!
A mãe riu outra vez. Sua filha estava, definitivamente, entrando naquela fase confusa, aquela que todas as crianças querem chegar e todos os pais querem pular. Ela era tão certa dos seus gostos e opiniões, que era um insulto agora não gostar mais do seu maior vício. Mas tudo na vida são fases, suas própria mãe dissera isso. Ela se lembrava quando era fã de uma super banda e, de repente, parou de acompanhá-la. As pessoas crescem, amadurecem, mudam as preferências. Talvez sejam assim até se tornarem velhas demais para argumentarem com si mesmas.
- Filha, pare de se importar com coisas tão... amenas. Você vai se apaixonar e desapaixonar pelas coisas com uma rapidez ao longo da sua vida, que verá que não vale a pena se martirizar tanto assim.
- Martirizar?
- Se torturar.
- Você tem certeza, mãe? Por que agora isso parece o fim do mundo.
- Agora. Olha a sua idade. Suas preocupações, por enquanto, são apenas as bonecas, os ídolos, os programas de tv. Daqui um tempo serão os garotos, a faculdade... Viva a vida, e o que tiver de ser, será.
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